Diêgo Alves e
Ana Pinheiro dos Santos
José Ferreira da Rocha,
(
Inhô Marquinhos)
Bernardino Lopes de Caldas
Narração e
interpretação do conto Sinhá Secada de
João Guimarães Rosa:
Diêgo Alves
Prólogo, dramaturgia e
direção geral: Lori Figueiró
Direção vocal e
corporal: Grace Mattos e Sandrinha Barbosa Nogueira
Realização: Centro de
Cultura Memorial do Vale
Ocês ainda num sabem,
mas lá nas terras do
Jequitinhonha
a donde as águas já
secaram,
os jenipapeiros já não
florescem mais
e o gado magro parece
alimentar
de nuvens e poeiras,
compadre meu, inhô
Marquinhos,
que Deus o tenha em um
bom lugar,
aquela noite, a lua
alumiando que nem prata,
nós dois delatando
prosas,
ouvi dele fato
acontecido
em terras não muito
distantes,
urdido na voz de um
outro cumpadre dele,
um certo Bernardino
Lopes de Caldas,
violeiro bom arretado
e curandeiro dos mais
especial.
Esse Bernardo havia
contado a ele que:
Lori Figueiró
SINHÁ SECADA
Vieram tomar o menino da
Senhora. Séria, mãe, moça dos olhos grandes, nem sequer era
formosa; o filho, abaixo de ano, requeria seus afagos. Não deviam
cumprir essa ação, para o marido, homem forçoso. Ela procedera
mal, ele estava do lado da honra. Chegavam pelo mandado inconcebíveis
pessoas diversas, pegaram em braços o inocente, a Senhora ainda fez
menção de entregar algum ter, mas a mulher da cara corpulenta não
consentiu; depois andaram a fora, na satisfação da presteza, dita
nenhuma desculpa ou palavra.
Muitos entravam na casa então,
devastada de dono. Cuidavam escutar soluço, do qual mesmo não se
percebendo noção. Sentada ela se sucedia, nas veras da alma, enfim
enquanto repicada de tremor. Iam lhe dar água e conselhos; ela nem
ouvia, inteiramente, por não se descravar de assustada dor. - "Com
quê?"- clamou alguém, contra as escritas injustiças sem
medida nem remédio. Achavam que ela devia renitir, igual onça
invencível; queriam não aprovar o desamparo comum, nem ponderar o
medo do mundo, da rua constante e triste. Ela continha na mão
lembrança de criança, a chupeta seca. - "Uf!"_ e a gente
se fazendo mal, com dó, com dúvida de Deus em escuros. Do jeito, o
fato se endereçou, começador, no certo dia.
No lugar, por
conta de tudo, mães contemplavam as filhas, expostas ao adiante
viver, como o fogo apura e amedronta, o que não se resume. Decidia o
que aquela? Tanto lhe fosse renegar e debater, ou se derrubar na vala
da amargura. De lá, de manhã, ela desaparecera. Recitavam vozes:
que numa prancha do trem-de-lastro tinham lhe cedido viagem, para por
aí ir vadiar, mediante algum mal amor. Sem trouxa de roupa, contavam
que com até um pé descalço. Desde o que, puniam já agora as mães
suas arregaladas filhas, por possíveis airadas leviandades mais
tarde. Dela não se informavam; dera-lhes esquecimento.
Entanto errados. Ela apenas instricta obediente se movera, a variável
rumo, ao que não se entende. Deixara de pensar, o que mesmo nem
suportasse - hoje se sabe - ao toque de cada i deia em i magem seu
coração era mais pequeno. O menino sempre ausente rodeava-a de
infinidade e falta.
Tomara, em dois, três dias, o aspecto
pobre demais, somente sem erguer nem arriar rosto: era a sã clara
coisa extraordinária - o contrário da loucura; encostava no ventre
o frio d as palmas das mãos. Por isso com respeito a viu e
ofereceu-lhe meio copo de cerveja e um pastel de tabuleiro (d)a
Quibia,( …) , às vezes adivinhadora. - "Sinhá..." -
sentiu que assim devia chamar-lhe, ajeitando-lhe o vestido e os
cabelos, ali no rumor da estação. Tinha uma filha, a quem estava
indo ver, opostamente, a boa preta Quibia. Convidou consigo a Sinhá,
comprando-lhe passagem para aquele intato lugar, (...). Sobre os
anos, foi pois quem dela pode testemunhar o verossímil.
Moraram numa daquelas miúdas casas pintadas, pegada uma a outra, que
nem degraus da rua em ladeira, que a Sinhá descia e subia, às horas
certas, devidamente, sendo a operária exemplar que houve, comparável
às máquinas, polias e teares, ou com o enxuto tecido que ali se
produz. Não falava, a não ser o preciso diário. Deixavam-na em
paz, por nela não reparar, até os homens. Só a Quibia vigiava-lhe
a sombra e o sono. Donde o coligido _ de relato _ o que de suas
escassas frases razoáveis se deduz.
Sinhá prosseguia,
servia, fechada a gestos, ladeando o tempo, como o que semelha
causada morte. Tomava-lhe a filha casada da Quibia, por empréstimos,
quase todo o ordenado, já que a ninguém ela nada recusava, queria
nada: não esperar; adiar de ser. A bem dizer quase nem comia,
rejeitava o gosto das coisas, dormia como as aves desempoleiradas.
Nem um ingrato minuto da arrancada separação poderiam
restituir-lhe! Que é que o tempo tacteia? Os dias, os meses, por
dentro, em seu limpo espírito, se afastavam iguais.
Decerto não a prezavam, em geral, portanto; junto dela pareciam
urgidos de cuspir e se gabar. Ora a suspeitassem mulher inteligente
endurecida, socapa de perfeita humildade. De propósito nem os
buscando nem evitando, acatava contudo de um mesmo modo os trelosos
meninos, os mais velhos comuns, os moços e moços, príncipes,
princesas. Quibia, sim, não duvidou, ainda que ouvida a pergunta que
a Sinhá se propunha: quando, em apontada ocasião, cometera culpa? E
a resposta _ de que, então, só se tivesse procedido mal, a cada
instante, a vida inteira... Daí, quedava, estalável, serena, no
circuito do silêncio, como por vezo não escavam buracos na barragem
de um açude.
No filho, no havido menino, vez nenhuma falou
_ nem a Quibia de nada soube, a não ser ao pôr-lhe a vela na mão,
mais tarde; _ feito guardado em cofre. Seus olhos iam-se empanando
encardidos, ralos os cabelos. Durante um tal tempo, nunca mais se
olhara em espelho.
Derradeiramente, porém, tiveram de
notar. Ela se esparzia, deveras dona, os olhos em espécie: de perto
ou de longe, instruía-os, de um arejo, do que nem se sabe. Por sua
arte, desconfiassem de que nos quartos dos doentes há momentos de
importante paz; e que é num cantinho que se prova melhor o vivo de
qualquer festa, entre o leal cão e o gato do borralho.
_
"Se ela viesse mais à igreja, havia de ser uma Santa..."_
censuravam. Passava espaços era acarinhando pedaço de pedra, sem
graça, áspera, que trouxera para casa; e que a Quibia precioso
conservou, desde a última data. Sinhá, no mais, se esquecia ali,
apartada, entrava no mundo pelo fundo, sem notícias ou lembranças.
Sim, estas, depois.
Primeiro, um moço, estrito e bem
trajado, chegou, subiu a ladeira, a quentes passos. Queria, caçava,
sem sosseg o, o paradeiro de sua mãe, da qual também malvadamente
separado desde meninozinho: e conseguira indicação, contadas
conversas; também o coração para cá intimado o puxando... Seria
ela?!
Não _ era não _ se conferiu, por nomes e fatos. O
moreno moço sendo de outro lugar, outra sumida mãe, outra idade. Só
o amor dando-se o mesmo, vem a ser, que o atraíra de vir, não por
esmo.
Mas, ela, que sentada tudo recebera, calada, leve se
levantou, caminhou para aquele, abençoando-o, pegou a mão do
tristonho moço, real, agora assim mesmo um tanto conformado. Sorria,
a Sinhá, como nunca a tinham avistado até ali, semelhava a boneca
de brincar de algum menino enorme. Seu esquel eto era quase belo,
delicado. Nesse favor de alegria persistiu, todos exaltando o forte
caso. Seja que por encurtado prazo. Até ao amanhecer sem dia.
À Quibia ela muito contou; e fechou, final, os novos olhos. O
caixão saiu, devagar desceu a ladeira, beirou o ribeirão rude de
espumas em lajedo, e em prestes cova se depositou, com flores, com
terra que a chuvinha de abril amaciava.
Quibia, entretanto,
enfim ciente, meditou, nos intervalos de prantos, e resolveu, com
sacrifícios. Retornou (...), indagou, veio enfim àquele arraial,
onde tudo, tão remoto, principiara.
Mas - o menino?
Morreu, lhe responderam. Anjinho, nem chegara a andar nem falar,
adoecido logo no depois do desalmoso dia, dos esforços arrebatados.
Quibia relanceou _ o passado, de repente movente, sem
desperdícios. Se curvou, beijando ali mesmo o chão, e reconhecendo:
_ "Sinhá Sarada..."
JOÃO GUIMARÃES ROSA