Memorial
A
hora-ruim, do meio-dia. A sexta, o demo à solta no mundo, hora de
recolhimento e rezação. Apeamos. No outrora-um-pátio, entrada de
grande casa, fazenda antiga das de fama, sobrado perobal. Imaginando
dava para ouvir os bois, na azáfama dos dias idos, o café cheiroso,
a sofrida escravaria, o alambique suando sua cachaça. Assentados no
batente de pedra preta preparamos o fogo, esquentar o feijão da
jornada a ser longa, rumo do São Gonçalo. Nem não ouvimos os
passos descalços, felinos rudes, do ancião que nos chegou por entre
as moitas de gravatá e erva-cidreira no antes-quintal. Velho que
perdeu da lembrança o tempo, visão saída de uma história de de
antanho, conto de assombrar. Mas ainda vivo, mesmo, pitando um
cachimbo de barro cozido-queimado, em fogo de terra, seus olhos eram
só crianças rindo, rapazes, olhos de não querer ir. Avô-menino.
Se disse Tadeu, Sôtadeu pai-veio, do Queluz, ali vivêra inteira
vida, em moleque escravo foi. “Aqui pousô o Imperadô e sua fia
Izabé, anadano mundo...” disse em sua voz que era um
só-suspiro, quase um ah. Moutrou-nos a medalhinha de um santo
apagada já a efígie, “presente-da-princesa-branca”,
piedosa em suas saias todas, no beija-mão. Ele o tambor,
congo-capitão, rapazoso. Que fazenda aquela? Cocho D’água pra
uns, do Calado pr’outros, para todos ‘do Cruzeiro’. – por
causa de um grande plantado na colina em frente, serviço de muitos
braços, rezas de dias na Paixão de miloitocentos e tantos, veio
inté o bispo, os padres todos de em roda léguas, o prefeito,
muita gente... Delegado e juiz, festa grande! Na Aleluia fogueirama
igual são João. Mataram dois bois e um capado gordo, a Páscoa de
nunca esquecer. A cruz ainda lá, um esqueleto no morro,a casa
poucas-telhas, morada de teiús, às vezes vinha um guará, chorava
feio chamando o bando que nunca vinha, tirava caminho pro rio, o do
Calado, de peixe bom. Sôtadeu – o último sobrado da rica era, cem
anos e mais ali descalço, nem triste, só e só, memorial. O dono
era um Pacheco, dotô de lesis da cidade, que um dia foi
deputado de depois comprou as terras de um Chico Rodrigues, capitão
da guerra-grande. Uns quantos pretos alfôrros da lei, libertos,
filhos-da-princesa, congos, congadeiros. Ia-se bem a fazenda, Sôtadeu
remembrava, voejava em seus olhinhos de criança no mundo só,
voltava ao tempo longe, lá. De tudo dava, fazia gosto, capado,
rapadura, milho, frutal frutaria, galinhas, mel, madeirame. Peroba e
cabiúna, ipê e jacarandá. O velho Pacheco e a filha por casar; de
mãe órfã, tia-velha a cuidava. Moça loura de olhos d’água,
pele alva de não pegar sol, suave e alegre, que prazia cantar e
colher, só só. Léguas em volta só reinava, os mancebos todos seus
criados, de adoração. Um sorriso seu e o mundo se mudava todo em
ouro, alegre-feliz, bobo mundo. Só mandava, mesmo se pedisse. Só
mandava. Nem o pai lhe podia oposição, amor que grande tinha. Nem
lhe ordenou marido, como os costumes, nos oitocentos e tantos – do
Imperadô. Um dia o velho enfermo mal, de longe tudo se arranjou
do melhor da medicina, da capital, até os reclusos tambores da
antes-senzala soaram noite adentro esconjurando o mal, benzeções.
Calou-os o padre, chegado com o doutor novo, curador do governo.
Desenganado, o velho sem netos. A filha-princesa decide então
casar-se às pressas, mandou arautear nas grotas todas, nos Coelhos,
Acuruí e São Vicente. No Santo Antonio do Monte e nos Portões.
Deram-se as novas em Sabará e Ouro Preto, nas Congonhas todas. Os
pretendentes todo, chegando e chegando, com presentes; rosas muitas,
garrotes taludos, baios encrinados, cofretes com anéis,
fazendas-de-França, perfumes de mil-reis a gota, licores de
Portugal, sabonetes Granado, colares. A todos recebeu, igual igual,
sem preferência. Uns só com os pais, quase todos a pretexto de
visita. Outros com a família quase toda, para dias, a casa se
enchendo, os muitos quartos e varandas vozeirais. Matou-se um boi,
depois outro. Era uma quase festa, não fosse a desdita, doença
malsã quebranto sem cura de reza. Armou-se botica no gabinete onde
assistia o doutor que, a mando do chefe, atendia a todos, velhos e
crianças, mesmo os pretos que, rijos, lá iam de-chapéu-na-mão,
descalços como no tempo do Chico Capitão, do cativeiro, do açoite
brabo no tronco que se derrubou depois, muito depois, quando a Calado
recebeu o monarca. Veio até um George, inglês da Morro Velho, louro
e mago rapaz de uais e gudis, falaz. A nenhum esperançou, nada de
mais, desamou e não quis, desconversou. Foram indo, uns primeiro,
outros vieram. O herdeiro-mor da Água Quente, para além do
Itaubira. O Promotor de Sabará, dono de meia Serra Geral, com casa
posta no São Bartolomeu, grande-rico. O Major Baêta-Bastos,
comandante no quartel de Cachoeira. Dois ex-seminaristas galantes e
um vereador à Câmara em Catas Altas. Os ricos todos, da Minas
velha, gente de ouro e cabedais. A princesa em galas, nos vestidos
suntuosos. A todos defeituou, desquis. Um um, de nome João, chamado
Titonho, pobre de nada ter, boa-gente do Córrego do Lobo, com
sitiozinho de pouca cana no Acuruí, defronte o rio, até cuja casa
chegava forte o estrondo da cachoeira grande do Velhas e as neblina
fria, noites adentro trovejo na cheia. Seu pai, anos antes, comprara
o sítio ao velho Pacheco em muitas quantas prestações, que o velho
em pessoa costuma ir receber, à guisa de visitar os muitos afilhados
no arraial. Titonho sempre à enxada, nunca fora fôra, só-ali só,
só. Rapagão bem-feito, braço forte, pele tostada ao sol, digno,
respeitoso, silencial. Fidalgaz. Foi à Calado, a ‘do Cruzeiro’,
levar os mils-réis da prestação, o combinado. Um balaio de doces e
uma partida de farinha, por ser da melhor de léguas muitas, qual
bahiana, de fama, fia e amarela, rara. Apeou, saudou, entrou. Louvado
seja Nossinhô Jesus Cristo... “Louvado seja...” A moça o
viu,perdeu falar, tresriu no olhar, palpitou. Ele sem gracejos, sem
graça, pagou, conversou curto, saiu. Sem dar ar, firme rio acima,
junto o perdigueiro, soldadaz, escudando. Ela desentendeu, dispensou
os querentes restantes, insoniou, casamental. Publicou: João Antonio
Corrêa dos Reis de Tal, Tinhonho pobre, cristão do arraial, sem
ouro ou cabedal, seria o noivo. Ele, já comprometido com certa
Esmeralda, vivente no Chancudo, beleza morena humilde jambo, sobrinha
do padre Joaquim, pároco da Boa Viagem de Itaubira do Campo. De
palavra e amor. Data marcada para o ano, apadrinhados. Não se
arredou, não fez questão, nem pela fazendama maior do Velhas, a do
Cruzeiro cobiçada por outros tantos. A princezinha insistiu, mandou
carta selada, quem mandou foi Sôtadeu em lombo de burro andador,
voltou sem resposta. Titonho e Esmeralda casaram-se em maio. Na
igreja grande do arraial, festança boa. A moça, de nome Angélica,
botou preto luto, fechado, grave. O velho Pacheco se foi, sem
esperança de netos. Angélica decidiu-se ao convento, Retiro das
Rosas, foi. Perdeu o sizo, matou-se na cela em noite de São João.
Da fazenda só os pretos, de longe vigiando, o velho Tadeu – um
quase-rei com olhos doces – e o cruzeiro, esperando talvez ainda o
neto do patrão chegar, reerguer a casa, limpar o mato, encher de
novo o curral no agora Quilombo dos Pachecos. Ainda a voz dos bois no
vento e o cheiro de café recém-coado. Cavalo arreado, hora de ir.
De chapéu na mão, o ancião nos rezou um adeus negro.
Capa do livro que contém o conto Memorial
O Conto Memorial, de Jorge Dikamba, é destaque no 12º Livro de Graça na Praça, promovido
pela Academia Mineira de Letras. O conto "Memorial" foi selecionado em 1º lugar em concurso promovido pela AML, dentre 187 textos de autores de todo o Brasil. Jair da Silva Araújo, de Salvador (BA), com o conto "Libertação de Maria Clara" e Maria Beatriz del Peloso Ramos, de Maricá (RJ), com o conto "Vozes Sertanejas", 2º e 3º lugares, também estão na publicação, juntamente com outros vinte e seis autores escolhidos pela Academia.
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