sábado, 28 de fevereiro de 2015

Reflexos ao calor do Vale




O pior cego é aquele que vê o que quer
Lembrando-me de Gaston Bachelard, lembrei-me das palavras que o filósofo dedica a Novalis: o homem que mora em Novalis não é mineiro em razão de sua condição de engenheiro, Engenheiro de Minas; é mineiro, fundamentalmente, por ser poeta, amigo íntimo das riquezas das minas, das grutas, da terra, poeta das profundezas da terra, objeto de seus afetos mais longinquamente primitivos.
E, aí, lembrei-me de José Lourival Figueiró, ou Lori Figueiró: mineiro, não por ser Engenheiro como Novalis, mas por ser mineiro, das Minas Gerais de Diamantina e de muitas outras terras do nosso Vale do Jequitinhonha e de outras para além do Vale. E Lori, é mineiro, como Novalis, pela intimidade afetuosa que dedica, com intensidade, à vida que vai sendo vivida pelas profundezas da terra, de onde extrai a riqueza humana e natural, sob a forma de pedras preciosas a faiscar pelas terras do Jequitinhonha. Vale lembrar que tais pedras brilham por terem, em parte, o brilho do olhar de fotógrafo que nele, em Lori, mora e, em parte, por serem, a riqueza que brilha do humano e do natural que vai, sucessivamente, sendo vivido e revivido com o poder multiplicador da fotografia que parte do fotógrafo e do fotografado, com o manuseio de quem faz o que se espera daquele que opera, sobretudo, com as mãos: o poeta.
E foi pensando nessa condição de poeta experimentada pelo fotógrafo que me pus a indagar se o fotógrafo que mora em Lori Figueiró teria aquele olho de um cego que não quer ver como traço específico do pior cego, nos termos do dizer de nossa tradição dos ditados populares. E, aí, resisto a essa tradição e digo os termos de uma outra tradição: o pior cego é aquele que vê o que quer. Parece-me que esse é um traço do cego que mora em Lori.
Explico esse traço da identidade de nosso fotógrafo. Diante de um sujeito outro - um ser humano ou um ser da natureza - que se põe na posição de influenciar o olhar do fotógrafo, esse se deixa determinar por aquele sujeito outro, mas ao mesmo tempo ele, o fotógrafo, determina um sentido para esse olhar da imagem que vem do outro. O fotógrafo, o que quer ver, é aquele, então, que tem uma imagem própria que se abre para a determinação da imagem outra, própria daquele que seria “objeto” do olhar de quem fotografa. Seria, à primeira vista, “objeto”, mas na imagem do fotógrafo, o que é fotografado tem vida própria, determina como sujeito, em parte, o sentido da imagem que o fotógrafo vê. Nesse sentido, a imagem que o olhar do fotógrafo captura tem uma dupla determinação: ela é determinada pelo olhar de quem fotografa - aqui, o fotógrafo quer ver a imagem que produz. Mas, ao mesmo tempo, é determinada pelo olhar daquele que é fotografado. Já, aqui, o fotógrafo quer ver a imagem que o outro produz. Ou seja, o olhar do fotógrafo é um olhar de paródia: ele opera na trilha do sentido que dá continuidade à imagem, repetindo, em parte, a imagem que o fotografado espera porque a deseja. Mas, ao mesmo tempo, ele atua na trilha que opera na descontinuidade, não repetindo essa imagem do fotografado, mas acrescentando a ela a imagem que o fotógrafo espera e deseja. Aqui, então, está, a meu ver, a condição de poeta que vejo no cego que é o pior: o que vê aquilo que intensamente quer ver, ou seja, o jogo das imagens que trazem as expectativas e o desejo do fotografado e do fotógrafo, criando um imaginário aberto ao cruzamento das imagens no espelho das interações que as movimentam.
E aí, nessa movimentação, o processo do imaginário, que resulta do cruzamento das imagens do fotógrafo e do fotografado, constitui um espaço aberto que convida, como espelho sedutor, outros olhares ao processo de ver aquilo que o fotógrafo e o fotografado veem, produzindo novas imagens que ampliam, repetindo e não repetindo o que se vê em processo de recepção/produção que, assim, em paródia, produz novos sentidos. Desse modo, a interação em que se verifica a vida em processo de constituição vai sendo transfigurada, recriada, pelo poder multiplicador da abertura propiciada pelo tratamento poético das imagens.
Enfim, o pior cego é aquele que vê o que quer ver, vendo o que os outros querem ver e vendo, ainda, aquilo que ainda não foi visto por aqueles que até então viram. Isso, porque outros vão querer ver o que ainda não se viu, pois, na força intensiva do que se vê, há sempre um traço novo para a imagem constituída, traço que é visto por um novo olhar ou por uma nova visão. Aliás, esse é, a meu ver, o convite do mineiro, Lori Figueiró: que a constituição humana e natural do Vale do Jequitinhonha seja o espaço que possibilite a pesquisa e a descoberta de pedras que testemunhem, com o brilho de seus sentidos, a riqueza mineral que é constitutiva desse território das nossas Minas Gerais.


                                                                                Edson Nascimento Campos 


 
Reflexos ao calor do Vale

Fotografias: Lori Figueiró
Texto de apresentação: Edson Nascimento Campos
Produção Editorial: Roseli Aguiar/ Gaia Cultural (cultura e meio ambiente)
Projeto Gráfico e Diagramação: Bruna Lubambo/ Casa Miúda
Tradução: Marcelo Matoso
Realização:





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