O
pior cego é aquele que vê o que quer
Lembrando-me
de Gaston Bachelard, lembrei-me das palavras que o filósofo dedica a
Novalis: o homem que mora em Novalis não é mineiro em razão de sua
condição de engenheiro, Engenheiro de Minas; é mineiro,
fundamentalmente, por ser poeta, amigo íntimo das riquezas das
minas, das grutas, da terra, poeta das profundezas da terra, objeto
de seus afetos mais longinquamente primitivos.
E,
aí, lembrei-me de José Lourival Figueiró, ou Lori Figueiró:
mineiro, não por ser Engenheiro como Novalis, mas por ser mineiro,
das Minas Gerais de Diamantina e de muitas outras terras do nosso
Vale do Jequitinhonha e de outras para além do Vale. E Lori, é
mineiro, como Novalis, pela intimidade afetuosa que dedica, com
intensidade, à vida que vai sendo vivida pelas profundezas da terra,
de onde extrai a riqueza humana e natural, sob a forma de pedras
preciosas a faiscar pelas terras do Jequitinhonha. Vale lembrar que
tais pedras brilham por terem, em parte, o brilho do olhar de
fotógrafo que nele, em Lori, mora e, em parte, por serem, a riqueza
que brilha do humano e do natural que vai, sucessivamente, sendo
vivido e revivido com o poder multiplicador da fotografia que parte
do fotógrafo e do fotografado, com o manuseio de quem faz o que se
espera daquele que opera, sobretudo, com as mãos: o poeta.
E
foi pensando nessa condição de poeta experimentada pelo fotógrafo
que me pus a indagar se o fotógrafo que mora em Lori Figueiró teria
aquele olho de um cego que não quer ver como traço específico do
pior cego, nos termos do dizer de nossa tradição dos ditados
populares. E, aí, resisto a essa tradição e digo os termos de uma
outra tradição: o pior cego é aquele que vê o que quer. Parece-me
que esse é um traço do cego que mora em Lori.
Explico
esse traço da identidade de nosso fotógrafo. Diante de um sujeito
outro - um ser humano ou um ser da natureza - que se põe na
posição de influenciar o olhar do fotógrafo, esse se deixa
determinar por aquele sujeito outro, mas ao mesmo tempo ele, o
fotógrafo, determina um sentido para esse olhar da imagem que vem do
outro. O fotógrafo, o que quer ver, é aquele, então, que tem uma
imagem própria que se abre para a determinação da imagem outra,
própria daquele que seria “objeto” do olhar de quem fotografa.
Seria, à primeira vista, “objeto”, mas na imagem do fotógrafo,
o que é fotografado tem vida própria, determina como sujeito, em
parte, o sentido da imagem que o fotógrafo vê. Nesse sentido, a
imagem que o olhar do fotógrafo captura tem uma dupla determinação:
ela é determinada pelo olhar de quem fotografa - aqui, o fotógrafo
quer ver a imagem que produz. Mas, ao mesmo tempo, é determinada
pelo olhar daquele que é fotografado. Já, aqui, o fotógrafo quer
ver a imagem que o outro produz. Ou seja, o olhar do fotógrafo é um
olhar de paródia: ele opera na trilha do sentido que dá
continuidade à imagem, repetindo, em parte, a imagem que o
fotografado espera porque a deseja. Mas, ao mesmo tempo, ele atua na
trilha que opera na descontinuidade, não repetindo essa imagem do
fotografado, mas acrescentando a ela a imagem que o fotógrafo espera
e deseja. Aqui, então, está, a meu ver, a condição de poeta que
vejo no cego que é o pior: o que vê aquilo que intensamente quer
ver, ou seja, o jogo das imagens que trazem as expectativas e o
desejo do fotografado e do fotógrafo, criando um imaginário aberto
ao cruzamento das imagens no espelho das interações que as
movimentam.
E
aí, nessa movimentação, o processo do imaginário, que resulta do
cruzamento das imagens do fotógrafo e do fotografado, constitui um
espaço aberto que convida, como espelho sedutor, outros olhares ao
processo de ver aquilo que o fotógrafo e o fotografado veem,
produzindo novas imagens que ampliam, repetindo e não repetindo o
que se vê em processo de recepção/produção que, assim, em
paródia, produz novos sentidos. Desse modo, a interação em que se
verifica a vida em processo de constituição vai sendo
transfigurada, recriada, pelo poder multiplicador da abertura
propiciada pelo tratamento poético das imagens.
Enfim,
o pior cego é aquele que vê o que quer ver, vendo o que os outros
querem ver e vendo, ainda, aquilo que ainda não foi visto por
aqueles que até então viram. Isso, porque outros vão querer ver o
que ainda não se viu, pois, na força intensiva do que se vê, há
sempre um traço novo para a imagem constituída, traço que é visto
por um novo olhar ou por uma nova visão. Aliás, esse é, a meu ver,
o convite do mineiro, Lori Figueiró: que a constituição humana e
natural do Vale do Jequitinhonha seja o espaço que possibilite a
pesquisa e a descoberta de pedras que testemunhem, com o brilho de
seus sentidos, a riqueza mineral que é constitutiva desse território
das nossas Minas Gerais.
Reflexos ao calor do Vale
Fotografias:
Lori Figueiró
Texto de apresentação:
Edson Nascimento Campos
Produção Editorial: Roseli Aguiar/
Gaia Cultural (cultura e meio ambiente)
Projeto Gráfico e Diagramação: Bruna
Lubambo/ Casa Miúda
Tradução: Marcelo Matoso
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