José Ferreira da Rocha,
(Inhô Marquinhos)
Antonia Teixeira Alves
( Tiantônia)
Narração e interpretação do conto "A menina de lá" de João Guimarães Rosa: Diêgo Alves
Prólogo, dramaturgia e direção geral: Lori Figueiró
Direção vocal e
corporal: Sandrinha Barbosa Nogueira
Realização: Centro de
Cultura Memorial do Vale
Prólogo
Diêgo Alves e Ana Pinheiro dos Santos
Prólogo
Era manhã do mês de
maio,
céu de muito azul,
alvas nuvens
frio apartado de se
aquecer na beira do fogão
com goles de café e
broas de fubá.
Compadre meu, inhô
Marquinhos,
homem forçoso de bom,
um tempo antes
de fazer a sua passagem
para outras paragens,
principiando lembranças nos revolteios das palavras,
me instigava, me
sugigando de pronto a conhecer
Tiantônia, comadre sua
de estima consideração e
fortes afetividades, e
Nhinhinha, a menina Maria,
olhos de um luzeiro
intenso, amor de criatura,
batizada com promessas
de agradecimento
à Nossa Senhora das
Graças,
sobrinha de se gostar
eterno e sem medida.
Lori Figueiró
A menina de lá
“Sua casa ficava
para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa,
lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com
vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão,
mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E
ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito
para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.
Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito.
Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre
sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. – “Ninguém entende
muita coisa que ela fala…” – dizia o Pai, com certo espanto.
Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava,
por exemplo: – “Ele xurugou?” – e, vai ver, quem e o quê,
jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do
sentido. Com riso imprevisto: – “Tatu não vê a lua…” –
ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto:
da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e
meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo
que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas
todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.
Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro
anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser
pela perfeita calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou
desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela
a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia
logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e
atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz,
abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e
imperturbada, a gente se assustava de repente. – “Nhinhinha, que
é que você está fazendo?” – perguntava-se. E ela respondia,
alongada, sorrida, moduladamente: – “Eu… to-u… fa-a-zendo”.
Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?
Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe
coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: – “Menino pidão…
Menino pidão…” Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito:
– “Menina grande… Menina grande…” Com isso Pai e Mãe davam
de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: – “Deixa…
Deixa…” – suasibilíssima, inábil como uma flor. O mesmo dizia
quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar
adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos.
Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre
ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe,
não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e
Pai, parecia mais uma engraças espécie de tolerância. E Nhinhinha
gostava de mim.
Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da
noite. – “Cheiinhas!” – olhava as estrelas, deléveis,
sobrehumanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: –
“Tudo nascendo!” – essa sua exclamação dileta, em muitas
ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava
com cheiro de lembrança. – “A gente não vê quando o vento se
acaba…” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava,
às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: – “Alturas
de urubuir…” Não, dissera só: – “… altura de urubu não
ir.” O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: –
“Jabuticaba de vem-mever…” Suspirava, depois: – “Eu quero
ir para lá.” – Aonde? – “Não sei” Aí, observou: – “O
passarinho desapareceu de cantar…” De fato, o passarinho tinha
estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não
estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: – “A
Avezinha.” De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de
“Senhora Vizinha…” E tinha respostas mais longas: – “Eeu?
Tou fazendo saudade.” Outra hora falava-se de parentes já mortos,
ela riu: – “Vou visitar eles…” Ralhei, dei conselhos, disse
que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito
perspectivos: – “Ele te xurugou?” Nunca mais vi Nhinhinha.
Sei, porém, que foi por aí que ela começou a
fazer milagres.
Nem Mãe nem Pai acharam logo a maravilha,
repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só,
sentada, olhando o nada diante das pessoas: – “Eu queria o sapo
vir aqui” Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus
disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo.
Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de
Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas uma bela rã brejeira, vinda
do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E
ela riu: – “Está trabalhando um feitiço…” Os outros se
pasmaram; silenciaram demais.
Dias depois, com o mesmo sossego: – “Eu queria
uma pamonhinha de goiabada” – sussurrou; e, nem bem meia hora,
chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada
enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios,
que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito
acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e
descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu
de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que
Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu –
“Deixa… Deixa…” – não a podiam despersuadir. Mas veio
vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou , quentinha. A Mãe, que a
olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que
ela tinha também outros modos.
Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os
curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os
padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério
convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber.
Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queria versar conversas,
sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.
O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era
que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior,
até o brejo ameaçava se estorricar. Experimentaram pedir a
Nhinhinha: que quisesse a chuva. – “Mas, não pode, ué…” –
ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo,
o leito, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. – “Deixa…
Deixa…” – se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao
insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.
Daí a duas manhãs quis: queria o arco-íris.
Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o
vermelho – que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou,
fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca
lhe vira, pular e correr por casa e quintal.
- “Adivinhou passarinho verde?” – Pai e Mãe
se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de um
reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a
menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não
entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar
sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com
seu passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes:
que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a
eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.
E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu.
Diz-se que da má água
desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.
Desabado aquele feito,
houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente
enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma
coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para
repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas
em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de – “Menina
grande… Menina grande…” – com toda ferocidade. E o Pai
alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava
tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu
corpo de homem o tamboretinho se quebrava.
Agora, precisavam de
mandar um recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o
enterro, com acompanhantes de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou
coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva,
do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado de satino, por
isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho
cor-de-rosa, com enfeites de verdes brilhantes… A agouraria! Agora,
era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade?
O Pai, em bruscas
lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso, era
como tomar culpa, estar ajudando ainda Nhinhinha a morrer…
A Mãe queria, ela
começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou – o
sorriso tão bom, tão grande – suspensão num pensamento: que não
era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim,
do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de
ser! – pelo milagre, o de sua
João
Guimarães Rosa, Primeiras estórias
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