sexta-feira, 3 de outubro de 2014

MEMORIAL, conto de Jorge Dikamba.

                      Jorge Dikamba no Museu Casa Guimarães Rosa em Cordisburgo
 
Memorial

A hora-ruim, do meio-dia. A sexta, o demo à solta no mundo, hora de recolhimento e rezação. Apeamos. No outrora-um-pátio, entrada de grande casa, fazenda antiga das de fama, sobrado perobal. Imaginando dava para ouvir os bois, na azáfama dos dias idos, o café cheiroso, a sofrida escravaria, o alambique suando sua cachaça. Assentados no batente de pedra preta preparamos o fogo, esquentar o feijão da jornada a ser longa, rumo do São Gonçalo. Nem não ouvimos os passos descalços, felinos rudes, do ancião que nos chegou por entre as moitas de gravatá e erva-cidreira no antes-quintal. Velho que perdeu da lembrança o tempo, visão saída de uma história de de antanho, conto de assombrar. Mas ainda vivo, mesmo, pitando um cachimbo de barro cozido-queimado, em fogo de terra, seus olhos eram só crianças rindo, rapazes, olhos de não querer ir. Avô-menino. Se disse Tadeu, Sôtadeu pai-veio, do Queluz, ali vivêra inteira vida, em moleque escravo foi. “Aqui pousô o Imperadô e sua fia Izabé, anadano mundo...” disse em sua voz que era um só-suspiro, quase um ah. Moutrou-nos a medalhinha de um santo apagada já a efígie, “presente-da-princesa-branca”, piedosa em suas saias todas, no beija-mão. Ele o tambor, congo-capitão, rapazoso. Que fazenda aquela? Cocho D’água pra uns, do Calado pr’outros, para todos ‘do Cruzeiro’. – por causa de um grande plantado na colina em frente, serviço de muitos braços, rezas de dias na Paixão de miloitocentos e tantos, veio inté o bispo, os padres todos de em roda léguas, o prefeito, muita gente... Delegado e juiz, festa grande! Na Aleluia fogueirama igual são João. Mataram dois bois e um capado gordo, a Páscoa de nunca esquecer. A cruz ainda lá, um esqueleto no morro,a casa poucas-telhas, morada de teiús, às vezes vinha um guará, chorava feio chamando o bando que nunca vinha, tirava caminho pro rio, o do Calado, de peixe bom. Sôtadeu – o último sobrado da rica era, cem anos e mais ali descalço, nem triste, só e só, memorial. O dono era um Pacheco, dotô de lesis da cidade, que um dia foi deputado de depois comprou as terras de um Chico Rodrigues, capitão da guerra-grande. Uns quantos pretos alfôrros da lei, libertos, filhos-da-princesa, congos, congadeiros. Ia-se bem a fazenda, Sôtadeu remembrava, voejava em seus olhinhos de criança no mundo só, voltava ao tempo longe, lá. De tudo dava, fazia gosto, capado, rapadura, milho, frutal frutaria, galinhas, mel, madeirame. Peroba e cabiúna, ipê e jacarandá. O velho Pacheco e a filha por casar; de mãe órfã, tia-velha a cuidava. Moça loura de olhos d’água, pele alva de não pegar sol, suave e alegre, que prazia cantar e colher, só só. Léguas em volta só reinava, os mancebos todos seus criados, de adoração. Um sorriso seu e o mundo se mudava todo em ouro, alegre-feliz, bobo mundo. Só mandava, mesmo se pedisse. Só mandava. Nem o pai lhe podia oposição, amor que grande tinha. Nem lhe ordenou marido, como os costumes, nos oitocentos e tantos – do Imperadô. Um dia o velho enfermo mal, de longe tudo se arranjou do melhor da medicina, da capital, até os reclusos tambores da antes-senzala soaram noite adentro esconjurando o mal, benzeções. Calou-os o padre, chegado com o doutor novo, curador do governo. Desenganado, o velho sem netos. A filha-princesa decide então casar-se às pressas, mandou arautear nas grotas todas, nos Coelhos, Acuruí e São Vicente. No Santo Antonio do Monte e nos Portões. Deram-se as novas em Sabará e Ouro Preto, nas Congonhas todas. Os pretendentes todo, chegando e chegando, com presentes; rosas muitas, garrotes taludos, baios encrinados, cofretes com anéis, fazendas-de-França, perfumes de mil-reis a gota, licores de Portugal, sabonetes Granado, colares. A todos recebeu, igual igual, sem preferência. Uns só com os pais, quase todos a pretexto de visita. Outros com a família quase toda, para dias, a casa se enchendo, os muitos quartos e varandas vozeirais. Matou-se um boi, depois outro. Era uma quase festa, não fosse a desdita, doença malsã quebranto sem cura de reza. Armou-se botica no gabinete onde assistia o doutor que, a mando do chefe, atendia a todos, velhos e crianças, mesmo os pretos que, rijos, lá iam de-chapéu-na-mão, descalços como no tempo do Chico Capitão, do cativeiro, do açoite brabo no tronco que se derrubou depois, muito depois, quando a Calado recebeu o monarca. Veio até um George, inglês da Morro Velho, louro e mago rapaz de uais e gudis, falaz. A nenhum esperançou, nada de mais, desamou e não quis, desconversou. Foram indo, uns primeiro, outros vieram. O herdeiro-mor da Água Quente, para além do Itaubira. O Promotor de Sabará, dono de meia Serra Geral, com casa posta no São Bartolomeu, grande-rico. O Major Baêta-Bastos, comandante no quartel de Cachoeira. Dois ex-seminaristas galantes e um vereador à Câmara em Catas Altas. Os ricos todos, da Minas velha, gente de ouro e cabedais. A princesa em galas, nos vestidos suntuosos. A todos defeituou, desquis. Um um, de nome João, chamado Titonho, pobre de nada ter, boa-gente do Córrego do Lobo, com sitiozinho de pouca cana no Acuruí, defronte o rio, até cuja casa chegava forte o estrondo da cachoeira grande do Velhas e as neblina fria, noites adentro trovejo na cheia. Seu pai, anos antes, comprara o sítio ao velho Pacheco em muitas quantas prestações, que o velho em pessoa costuma ir receber, à guisa de visitar os muitos afilhados no arraial. Titonho sempre à enxada, nunca fora fôra, só-ali só, só. Rapagão bem-feito, braço forte, pele tostada ao sol, digno, respeitoso, silencial. Fidalgaz. Foi à Calado, a ‘do Cruzeiro’, levar os mils-réis da prestação, o combinado. Um balaio de doces e uma partida de farinha, por ser da melhor de léguas muitas, qual bahiana, de fama, fia e amarela, rara. Apeou, saudou, entrou. Louvado seja Nossinhô Jesus Cristo... “Louvado seja...” A moça o viu,perdeu falar, tresriu no olhar, palpitou. Ele sem gracejos, sem graça, pagou, conversou curto, saiu. Sem dar ar, firme rio acima, junto o perdigueiro, soldadaz, escudando. Ela desentendeu, dispensou os querentes restantes, insoniou, casamental. Publicou: João Antonio Corrêa dos Reis de Tal, Tinhonho pobre, cristão do arraial, sem ouro ou cabedal, seria o noivo. Ele, já comprometido com certa Esmeralda, vivente no Chancudo, beleza morena humilde jambo, sobrinha do padre Joaquim, pároco da Boa Viagem de Itaubira do Campo. De palavra e amor. Data marcada para o ano, apadrinhados. Não se arredou, não fez questão, nem pela fazendama maior do Velhas, a do Cruzeiro cobiçada por outros tantos. A princezinha insistiu, mandou carta selada, quem mandou foi Sôtadeu em lombo de burro andador, voltou sem resposta. Titonho e Esmeralda casaram-se em maio. Na igreja grande do arraial, festança boa. A moça, de nome Angélica, botou preto luto, fechado, grave. O velho Pacheco se foi, sem esperança de netos. Angélica decidiu-se ao convento, Retiro das Rosas, foi. Perdeu o sizo, matou-se na cela em noite de São João. Da fazenda só os pretos, de longe vigiando, o velho Tadeu – um quase-rei com olhos doces – e o cruzeiro, esperando talvez ainda o neto do patrão chegar, reerguer a casa, limpar o mato, encher de novo o curral no agora Quilombo dos Pachecos. Ainda a voz dos bois no vento e o cheiro de café recém-coado. Cavalo arreado, hora de ir. De chapéu na mão, o ancião nos rezou um adeus negro.


                                       Capa do livro que contém o conto Memorial


O Conto Memorial, de Jorge Dikamba, é destaque no 12º Livro de Graça na Praça, promovido
pela Academia Mineira de Letras. O conto "Memorial" foi selecionado em 1º lugar em concurso promovido pela AML, dentre 187 textos de autores de todo o Brasil. Jair da Silva Araújo, de Salvador (BA), com o conto "Libertação de Maria Clara" e Maria Beatriz del Peloso Ramos, de Maricá (RJ), com o conto "Vozes Sertanejas", 2º e 3º lugares, também estão na publicação, juntamente com outros vinte e seis autores escolhidos pela Academia.

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